A aprovação das mudanças no Código Florestal pela Câmara dos Deputados, no dia 24 de maio, desencadeou uma onda de violência no campo e voltou a colocar em evidência as trágicas mortes por conflitos pela terra ou pelo uso dos recursos naturais que historicamente marcam o meio rural brasileiro. Aparentemente, a descabida “licença para desmatar” que o Congresso ameaça aprovar já está sendo encarada por alguns setores como uma ainda mais absurda “licença para matar”, cujas vítimas seriam lideranças que defendem a reforma agrária, os direitos humanos e a floresta amazônica. Uma situação intolerável que causa tristeza e indignação, e que requer mudanças estruturais para ser revertida.
Em dez dias, a violência no campo deixou pelo menos cinco mortos. Na mesma terça-feira em que os deputados federais votavam alterações no Código Florestal que inevitavelmente aumentarão o desmatamento, Maria do Espírito Santo da Silva e seu companheiro José Claudio Ribeiro da Silva, lideranças de um projeto de assentamento agroextrativista, foram assassinados em uma emboscada perto de Nova Ipixuna, no sudeste do Pará. Anunciada aos deputados durante a votação, a notícia recebeu uma mórbida vaia dos representantes da bancada ruralista e de seus entusiastas. Quatro dias depois, o corpo do trabalhador rural Eremilton Pereira dos Santos, possível testemunha, foi encontrado também morto a tiros no mesmo assentamento.
Na sexta-feira daquela semana, na região de Lábrea em Rondônia, foi assassinado Adelino Ramos, líder de um projeto de assentamento agroflorestal, sobrevivente do massacre de Corumbiara, de 1995, no qual pelo menos doze pessoas morreram nas mãos de pistoleiros e policiais militares. No mesmo dia da morte de Adelino, Almirandi Pereira Costa, vice-presidente da associação quilombola de Charco, sofreu um atentado em São Vicente, no Maranhão, mas sobreviveu. Na quinta-feira seguinte, morreu o assentado Marcos Gomes da Silva, baleado duas vezes, uma delas quando já estava sendo transportado para o hospital, em Eldorado dos Carajás, palco da chacina que matou 19 integrantes do MST e completou quinze anos em abril deste ano.
Esses incidentes trazem à tona novamente para a opinião pública nacional e internacional os conflitos no campo brasileiro, cenário de uma realidade conturbada, em que dia a dia aqueles que lutam pela terra, pela preservação das florestas, e por formas sustentáveis de se relacionar economicamente com os recursos naturais, são vítimas de todo tipo de violência, desde ameaças e intimidações até assassinatos brutais, passando por destruições, incêndios e agressões. Repetem-se, assim, as tristes histórias de Chico Mendes, Padre Josimo, Dorothy Stang e de tantas outras pessoas que tombaram anônimas, eliminadas como se suas vidas não valessem nada, silenciadas por forças políticas e econômicas que lucram com o desmatamento ilegal e com a grilagem de terras. Mortes anunciadas, esperadas, previstas, tragédias que poderiam ser evitadas.
Das cinco vítimas nesse período, três haviam denunciado madeireiras por desmatamento irregular e recebiam ameaças de morte há bastante tempo, já informadas às autoridades e divulgadas nos relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O próprio Zé Castanha, como era conhecido o líder agroextrativista, havia anunciado a iminência de seu assassinato em palestras e entrevistas. Segundo dados da CPT, 1.855 pessoas foram ameaçadas de morte pelo menos uma vez de 2000 a 2011, a maior parte delas no Pará. Do total, 207 foram ameaçadas duas ou mais vezes. Destas, 42 foram mortas e outras trinta sofreram tentativas de assassinato.
Um dos fatores que contribui sobremaneira para a perpetuação desse quadro é a impunidade generalizada de que desfrutam os assassinos e os mandantes desses crimes. Segundo a CPT, de 1985 até 2010, foram assassinadas 1.580 pessoas por causa de conflitos no campo. Apenas 91 delas foram a julgamento, com a condenação de 21 mandantes e 73 executores. Dos mandantes condenados, somente Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, acusado de ser responsável pelo assassinato da Irmã Dorothy Stang, continua preso. Especificamente no Pará, um levantamento do governo federal mostra que quase 98% dos casos de homicídios no campo ocorridos nos últimos dez anos ficaram impunes, sendo que grande parte sequer chegou à Justiça. Uma impunidade incompatível com o Estado de direito em que supostamente vivemos.
Em reação aos assassinatos ocorridos, o governo federal reuniu diversos órgãos estatais e ministérios – entre eles o do Desenvolvimento Agrário, o do Meio Ambiente, o da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos – a fim de definir medidas para conter a onda de violência no campo. Entre as ações previstas está a criação de um grupo de trabalho interministerial para acompanhar a investigação dos homicídios e garantir que não haja impunidade, a proteção nos casos mais graves de lideranças rurais ameaçadas de morte, a intensificação das operações “Arco de Fogo” e “Arco Verde”, para coibir práticas como a extração ilegal de madeira na região, e a criação de dois escritórios de regularização fundiária nesses locais.
É louvável que o governo federal tome medidas emergenciais para combater o problema, mas é preciso ir à raiz desta situação, que está no apoio dado ao agronegócio, através de largos financiamentos e incentivos fiscais, para garantir suas atividades de exportação, para trazerem divisas para o Estado brasileiro. Como disse D. Tomás Balduíno, conselheiro permanente da CPT, por ocasião do assassinato da Irmã Dorothy, quem mata é o agronegócio: “Esses assassinatos não são motivados por intrigas pessoais. Eles estão ligados à problemática da terra. Onde, além da ocorrência de intimidação, também ocorre execução” (17/02/2005 – Agência Carta Maior). E o Estado, na região Amazônica, no campo - representado pela polícia e pelo judiciário local - é, não raras vezes, defensor dos grandes proprietários e dos grileiros.
Nesse contexto, a aprovação do Código Florestal na Câmara só agrava o problema, antes mesmo de sua votação no Senado e da sanção presidencial. Provoca desde agora uma corrida para o desmatamento que aumenta a tensão fundiária, gera mais insegurança no campo, amplia a vulnerabilidade das populações tradicionais. Pouco adianta punir os responsáveis por esses crimes, aumentar a fiscalização e escoltar as pessoas ameaçadas se não se alterar a desigual estrutura fundiária brasileira e se continuar priorizando projetos que só beneficiam latifundiários, empreiteiras, mineradoras, madeireiras, construtoras. A ABONG acredita que, para além da necessária punição aos envolvidos nos crimes, só com a adoção de outra concepção de desenvolvimento, com uma reforma agrária efetiva, com a proteção dos recursos naturais, com a demarcação das terras das populações tradicionais, essa violência no campo pode ter fim.